Após rejeitar oferta de conversar em Belarus, Zelenski aceita encontro que Moscou vê como rendição
Forças russas entraram na segunda maior cidade da Ucrânia, Kharkiv, e iniciaram uma batalha nas suas ruas após uma noite de intensos combates. Em Kiev, a pressão continua com bombardeios, mas não há sinais de uma ofensiva total contra o centro da capital.
A movimentação veio logo após o Ocidente ter elevado o grau de punição a Moscou, ao anunciar o início da desconexão de alguns bancos russos do sistema internacional de transferências financeiras. Putin ainda reagiu a isso colocando suas forças nucleares em alerta.
No fim da manhã (madrugada no Brasil), o Kremlin anunciou que uma delegação havia sido enviada para Gomel, cidade na Belarus a 40 km da fronteira ucraniana. “Estaremos prontos para começar negociações”, disse o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov.
Inicialmente, o governo de Zelenski rejeitou a iniciativa, presumivelmente porque o que Moscou quer é uma rendição. Em um pronunciamento, o presidente disse que seria possível conversar na Belarus se os russos não tivessem usado a ditadura aliada como uma das bases para seu ataque —justamente contra Kiev, a menos de 200 km da fronteira sul belarussa.
Por volta das 15h (10h em Brasília), contudo, a Presidência ucraniana disse que aceita ir a Gomel nesta segunda (28), demonstrando uma mudança de tom do líder. O ucraniano teve um sábado de sucesso midiático no Ocidente, deixando seu passado de comediante e político inábil no poder para trás ao fazer discursos desafiadores em Kiev.
Questionado pela rede CNN se considerava o movimento de Zelenski correto, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, apenas disse “confiar no julgamento do presidente”.
Já o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, afirmou que Moscou aceitou o encontro sem precondições, o que seria resultado da resistência imposta pelo país aos invasores.
Putin, por sua vez, apareceu rapidamente pela primeira vez em dois dias, em um pronunciamento televisivo sobre o Dia das Forças Especiais. “Eu presto especial tributo àqueles que estão desempenhando heroicamente seus deveres militares durante a operação especial para assistir as repúblicas populares do Donbass”, afirmou.
O eufemismo para a guerra virou obrigatório para a mídia russa, agora proibida em falar “invasão” ou “agressão”. Ele se refere ao “casus belli” arrumado por Putin para, nas suas palavras, desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia: o reconhecimento como países de duas áreas controladas por rebeldes pró-Rússia desde 2014 no Donbass (leste do país), que ato contínuo pediram ajuda militar a Moscou.
Ela veio, como os meses de preparação acabaram provando, na forma de uma invasão por diversos pontos da Ucrânia. Kiev está cercada por dois pontos, a noroeste e a nordeste.
“Eles podem estar sofrendo sim com a resistência ucraniana, mas essa abertura do canal de rendição parece contar outra história. Podem querer evitar um massacre de civis na capital, que acabaria com o que sobrou de imagem externa da Rússia, mas também para facilitar a instalação de um governo pró-Kremlin”, diz o cientista político Konstantin Frolov.
Por outro lado, disse, há rumores em Moscou de que Putin poderá escalar a ação militar de forma dramática, uma vez que sua abordagem até aqui não dobrou Zelenski.
Aí entra a eventual queda de Kharkiv, que os ucranianos dizem ter evitado ao longo do domingo. Já na noite de sábado houve movimento grande de blindados, tanques e obuseiros autotransportados pela fronteira na região de Belgorod, prenunciando cerco e invasão. Um gasoduto na região foi explodido, mas não há ainda uma avaliação do impacto do ataque.
“Estamos resistindo ao inimigo”, disse a conta de Facebook da prefeitura local.
Se Kharkiv e seus 1,4 milhão de habitantes acabarem em mãos russas, isso pode facilitar o reforço das operações em Kiev, a oeste, e cortará uma linha importante entre as forças ucranianas que operam nas antigas fronteiras da chamada linha de contato, que a separava os rebeldes do Donbass.
Ao mesmo tempo, os russos tomaram cidades nos arredores de Kherson, cidade cerca de 500 km ao sul de Kharkiv. Se a conquistarem, poderão “fechar” uma linha cruzando o país, espremendo forças ucranianas entre ela e o Donbass.
Com o início da guerra, grande parte da população ucraniana começou a se deslocar pelo país, na tentativa de cruzar fronteiras e fugir do co
Alexander Ermochenko/Reuters
Nas áreas separatistas, os ucranianos mantém sua campanha de bombardeios. Nesta noite, atingiram outro depósito de combustível, na cidade de Rovenki. A TV russa também mostrou imagem de vários danos em áreas residenciais da localidade, embora não haja notícia de vítimas.
Faz parte da guerra de propaganda, claro, mas sofrimento civil, ainda que manipulável, é sofrimento. Do lado ucraniano, além do trauma dos dias sob fogo e um número ainda incerto, na casa das centenas, de mortos, há a questão dos refugiados.
Segundo a ONU, já são 368 mil pessoas que saíram do país, a maioria para a Polônia. O Alto Comissariado para Refugiados da organização estima que até quatro milhões de ucranianos podem fugir, quase 10% da população.
Na capital, a madrugada foi de ataques em torno da cidade. Um grande depósito de petróleo de uma base aérea de Vasilkiv, a sudeste de Kiev, foi atingindo, pintando o céu noturno de laranja à distância.
“A noite foi brutal. Hoje, não há uma única coisa no país que os ocupantes não consideram um alvo aceitável. Eles lutam contra jardins de infância, prédios residenciais, até ambulâncias”, disse Zelenski, em um vídeo no Instagram.
Em Moscou, a acusação foi negada pelo porta-voz do Ministério da Defesa, general Igor Konachenkov. Ele diz que os ataques são apenas contra alvos militares “com armas de precisão, mísseis de cruzeiro, fazendo o melhor para proteger a vida de civis”.
Um toque de recolher está em vigor na capital, cuja defesa de áreas centrais parece entregue a milícias e civis, que receberam ao menos 18 mil fuzis, liberando militares para a linha de frente. O problema é que há descoordenação aparente, e há relatos de civis sendo baleados por outros, achando se tratar de russos. Na cidade de Dnipro, repórteres dinamarqueses foram baleados porque não falavam ucraniano ao serem abordados.
Fonte: folha.uol.com.br