Tudo, nas imagens, é caricato, retrato tragicômico de uma elite brasileira que despreza o Brasil
“Por que Machado de Assis é bom?” —o garoto perguntou. “Eu leio na escola. A professora diz que é da hora, eu sei que deve ser, mas não entendo onde tá, tipo, a graça. Eu acho mó chato.” Tentando responder à pergunta, num bate-papo com alunos numa escola estadual, cito autores, críticos, repito chavões, falo difícil e vejo pelos olhos do menino que a minha explicação tá tão chata e abstrusa quanto os livros que ele tenta compreender.
Já em casa, sob o oráculo tardio e infalível da Lorenzetti, cai sobre mim o que eu deveria ter dito uma hora antes. “Machado de Assis é um gênio porque descreveu, há 150 anos, todo mundo que você conhece. Seu tio. O taxista da esquina. O colega mais rico e o mais pobre da turma. É difícil para você reconhecê-los pois o seu tio, o taxista, o colega mais rico e mais pobre da turma estão lá no livro de fraque e cartola, locomovem-se em carruagens e cabriolés, falam com o sotaque do século 19. Basta traduzir aquele século pro nosso, porém, e você vai ver a sua ceia de Natal inteirinha.”
Foi a Fernanda Torres, sempre brilhante, quem traçou o paralelo, num post, entre o calamitoso jantar do Naji Nahas pro Temer et caterva e outro jantar, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Tudo, nas imagens de 2021, é caricato, retrato tragicômico de uma elite que ninguém, como Machado, soube pintar: “vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho”.
O crítico Roberto Schwarz criou o conceito de “ideias fora do lugar” para explicar como os senhores de escravos brasileiros, nos debates sobre a abolição, citavam autores liberais para impedir o estado de “interferir em seus negócios privados”. Como seus “negócios privados” incluíam comprar e vender seres humanos, a apropriação indevida da teoria liberal é tão absurda quanto, digamos, um Paulo Marinho, um Paulo Guedes, uma Fiesp e outros apoiarem um fascista defensor da tortura para “modernizar o país”. Eis o tipo de valor que o conservadorismo brasileiro conserva.
Qual “ideia” mais “fora de lugar” do que aquele cenário cafona de rico paulistano no vídeo do jantar? Um pastiche de Versalhes ou “Downton Abbey”: papel de parede verde-musgo, sanca neoclássica, talheres de prata, vaso chinês. Nenhuma mulher, nenhum negro, nenhum traço do século 20, semana de 22 passou longe, Tropicália passou batido. É uma elite brasileira que despreza o Brasil, não conhece o Brasil, não merece o Brasil. Azuleja o quintal e planta ciprestes na calçada.
O fato mais tristemente machadiano do vídeo, porém, é que os caricatos comensais naquele bunker do conservadorismo pré-Revolução Francesa, aqueles fósseis do antigo regime, são tidos por muitos, hoje, como os “liberais” que nos salvarão das trevas. Esse pessoal que cita a escola austríaca de cima da liteira.
Não à toa, semana passada, a esquerda decidiu não ir às tristes manifestações do MBL e do Vem Pra Rua. Eu fui. Numa ditadura bolsonarista, minha vida corre risco, sob um governo do Temer & MBL & Vem Pra Rua, não. Mas pro pessoal do movimento negro, pros pobres, indígenas e todas as minorias Brasil adentro, tanto sob Bolsonaro quanto sob qualquer um daqueles delinquentes que riem de forma obscena no jantar, o pau de arara & a bala “perdida” & a vala comum são a regra. Há 521 anos.
Fonte: folha.uol.com.br