Academias antifascistas de boxe ensinam mais do que jabs e cruzados

Projetos em São Paulo atendem comunidades menos favorecidas e têm braço educacional

SÃO PAULO – Entre um jab e um direto, a pergunta “o que é o fascismo?”. Entre uma luta e outra, uma apresentação de drag queens. Às terças ou sextas, rodas de leitura, passeios em instituições culturais ou brincadeiras inspiradas no Teatro do Oprimido.

O cenário resume a rotina das academias MM Boxe e Boxe Autônomo, que misturam a trajetória clássica das academias de boxe, nascidas em barracões, com a de movimentos sociais, fruto dos coletivos sociopolíticos.

As duas escolas, a primeira em Rio Claro e a outra na capital, se autodenominam antifascistas e buscam ensinar mais que a técnica de luta perfeita —não que o cuidado com a parte esportiva seja deixado de lado, pelo contrário.

Marcella e Samuel durante treino do Boxe Autônomo
Marcella e Samuel durante treino do Boxe Autônomo – Eduardo Knapp – 6.dez.2021/Folhapress

Jucielen Romeu é prova disso. A pugilista esteve nas Olimpíadas de Tóquio e foi formada na MM Boxe. O treinador da seleção brasileira Leonardo Macedo é filho do dono da academia e irmão de um dos treinadores, o Macedão.

A MM Boxe foi fundada pela família Macedo, em 2003. Os filhos, Leonardo e Breno, aprenderam a lutar lá. Após uma carreira dentro dos ringues, decidiram continuar à beira das cordas, como técnicos.

O Boxe Autônomo, de certa forma, é fruto do ano de 2013 e suas diversas implicações políticas para o Brasil. Foi quando Breno conheceu Raphael Piva, durante uma aula da disciplina de estudos socioculturais do futebol, na USP.

Em 2015 e junto com Guilherme Miranda, eles fundaram a academia, com aulas na ocupação de refugiados palestinos Leila Khaled. Uma das inspirações do grupo é o trabalho do time de várzea Autônomos FC. Outra, a proposta das academias populares italianas, que Breno conheceu (por indicação de Piva) em uma viagem à Europa.

“Eu voltei e falei para ele: ‘A gente precisa fazer isso aqui!’”, conta Breno. Eles também fizeram atividades itinerantes durante a ocupação das escolas em 2016 e chegaram à Favela do Moinho em 2017, após uma intervenção policial que matou um morador do local.

O grupo resolveu, então, oferecer aulas de boxe aos jovens da comunidade e percebeu que boa parte dos alunos tinha interesse em treinar de forma regular. Em 2018, surgiu a oportunidade de ocupar a cobertura da Casa do Povo, espaço cultural no Bom Retiro próximo o suficiente da favela para que as crianças do Moinho pudessem frequentá-lo.

“[Fazer atividades educacionais] Já era uma vontade antiga, mas veio de uma demanda da molecada. Às vezes, a gente tava fazendo aquecimento e alguém perguntava: ‘O que é nazismo?’; ‘O que é fascismo?’; Casamento gay é certo ou errado?’; ‘Você acredita em Deus?’. Pô, eu sou formado em sociologia, me dava vontade de parar, sentar e conversar”, lembra Piva.

Ele conta que um dos mais curiosos é o campeão Kelvy e que o volume de questionamentos cresceu após a pandemia. Por isso, desde o início do ano, compõe o cronograma das turmas de boxe um dia de atividades educacionais.

Folha acompanhou um desses encontros, com cerca de 10 crianças. Quem comanda o dia não são os treinadores de boxe, mas os voluntários da Casa do Povo: Manuela Rached Pereira, Rafael Pelletti, Flávia Odenheimer e Geo Santana (essa última, ex-voluntária, que ajuda neste projeto especificamente).

Os jovens chegaram no fim da tarde e ganharam lanche, como sempre. Na hora de lavar louça, Breno, 18, questionou os monitores sobre feminismo e iniciou um breve debate. Enquanto isso, Kelvy, que nasceu na Bahia, começava uma roda de capoeira com Flávio, um visitante. Outras crianças brincava m de boxe.

Depois, os monitores conduziram uma série de atividades inspiradas no Teatro do Oprimido (método criado pelo teatrólogo Augusto Boal). Marcella foi uma das mais engajadas. Ao final, antes de irem para uma peça na própria Casa, as crianças foram provocadas com a pergunta: “Vocês são oprimidos?”.

“A gente dá muito valor à técnica do boxe, temos algo muito apurado nesse sentido, mas sempre aperfeiçoando o diálogo com a ideia de luta popular, pensando o boxe como atividade do corpo, física”, destaca Piva.

“Um esporte em um lugar que, apesar de estar no centro da cidade mais rica da América do Sul, não tem oferta desse tipo de atividade [esportiva] que, como tantas outras, deveria estar no rol de direitos mínimos.”

Na MM Boxe, a parte educacional acontece às sextas e também durante os eventos que a academia promove.

“A inspiração vem da nossa observação sobre a falta de um contexto educacional, social e político para os praticantes de boxe. Ele é um esporte que reúne, historicamente, pessoas das classes menos favorecidas, é um esporte de imigrantes, de minorias, de refugiados de guerra. Sempre foi um esporte de quem vem do gueto, digamos assim”, analisa Breno, que também é mestre em História Social pela USP.

Além das rodas de leituras ou sessões de filmes com debates, a academia também busca inserir atividades culturais no seu calendário. Por exemplo, sediou um campeonato de boxe no qual, nos intervalos das lutas, aconteciam performances de drag queens.

“A gente lida com jovens de 15, 16 anos, que têm dificuldade para ler um texto de uma página, entendeu? Uma das coisas que nos ajuda é abrir o nosso ginásio para outras atividades não exclusivas do boxe. A gente chama a galera do hip-hop, do reggae, do samba, do movimento LGBTQIA+… Grupos que se identificam com o antifascismo, com o não-autoritarismo e com o respeito da diversidade”, completa.

Fonte: folha.uol.com.br

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