Cidade que ninguém quer ver está exposta em cartões-postais de São Paulo

Theatro Municipal, Masp e Patriarca são alguns pontos de maloca, as barracas usadas por pessoas em situação de rua

SÃO PAULO – É quando a noite começa a cair que alguns dos cartões-postais da maior e mais rica cidade do país ganham outro contorno. Desenhada pela ação de um exército de pessoas que, sem ter onde morar, monta e desmonta os andaimes de uma cidade que vive nos bastidores, essa São Paulo se ergue em lonas, barbantes, cabos de vassoura, cobertores e arames. São as “malocas”, assim chamadas pelos próprios “moradores”.

Não se vê a expectativa de dias felizes a serem lembrados com saudade num incerto futuro, como, nos anos 1950, cantava Adoniran Barbosa no melancólico samba “Saudosa Maloca”.

Espalhadas por ruas, escadarias, praças e viadutos, as barracas, cada vez mais, tornam-se o destino de uma população crescente, empobrecida pelo desemprego em alta e pela crise econômica, agravada pela pandemia de Covid-19.

Complexo histórico, cultural e religioso da Companhia de Jesus, ordem religiosa dos jesuítas, o Pateo do Collegio, lugar onde São Paulo nasceu, em 1554, serve de morada para ao menos cem pessoas, que dormem ali em frente diariamente. Costumam chegar por volta das 18h. Entre as 5h e as 5h30, saem pelas ruas sem destino.

Maurício da Silva dos Santos, 41, arma sua maloca ali. Ele desconhece a história daquele cartão-postal. Afirma, porém, que o espaço é amigável. “Tem maloca de solitário, família. Só não dá para dizer que não vai aparecer gente ruim”, diz.

Cearense de Juazeiro do Norte, chegou por aqui em 2020. “Logo levaram tudo, roupa, celular, documento, dinheiro. Não tinha para onde ir”, conta. “Aqui é iluminado, tem segurança [guardas municipais 24 horas por dia], comida, água e até cobertor.”

Com tanta gente vivendo nas ruas da cidade de São Paulo, cuja administração cogitou até criar uma área de camping, não existe maloca para todo mundo. Alguns recorrem a caixas de papelão, outros se acomodam sobre um cobertor estendido no chão.

A prefeitura afirma que oferece 117 serviços de acolhimento com pernoite para as pessoas em situação de rua em toda a cidade, o que equivale a cerca de 15 mil vagas.

“A gente procurou o abrigo, mas não deixaram dormir de casal. Na rua nunca dá para ficar tranquilo”, explica Jonatan Felipe Bilek, 31, ao ajeitar o cobertor sobre o corpo da mulher, Cristina, 32, grávida há cinco meses.

O casal deixou Ponta Grossa (PR) e veio tentar a sorte em São Paulo quando Jonatan perdeu o emprego. “Todo o mundo diz que aqui é a cidade das oportunidades”, diz ela. Chegaram na quinta (5). “Me falaram que nesse lugar [no Pateo] podemos ter o mínimo de dignidade”, conta ele, encostado na grade de proteção do monumento aos fundadores de São Paulo.

Cristina teme que a situação ainda piore. “Não quero que meu filho nasça nesse ambiente”, diz a mãe.

Na última quarta (11), uma megaoperação da polícia e da prefeitura desmobilizou o fluxo e desmontou barracas na praça Princesa Isabel, onde se assentava a “nova cracolândia”. Usuários de drogas se dispersaram pelo centro da cidade.

O número de pessoas que vivem nas ruas da capital cresceu 31% durante a pandemia. Em 2021, segundo a prefeitura, havia 31.884 pessoas sem teto na cidade. São 7.540 mais do que o registrado em 2019, quando 24.344 viviam nessa situação. Esse contingente é, no mínimo, maior do que o dos que vivem em 67,7% dos municípios brasileiros, com menos de 20 mil habitantes em cada um.

“Nossa experiência mostra que esse número é subestimado”, afirma Anderson Longhi, 38, da ONG Onde Está o Teu Irmão, que serve refeições, além de kit higiene e cobertores. “Acreditamos que a população em situação de rua perambulando por São Paulo pode ser até 30% maior.”

Esse cenário de desamparo revela a crueldade da nossa estrutura social, na avaliação do arquiteto e urbanista Lourenço Gimenes, do escritório FGMF, à frente de uma série de projetos de intervenção urbana.

Ele explica que, como a sociedade, de modo geral, abandonou o espaço público, os excluídos passaram a ocupar esses lugares. “Eles se sentem tão abandonados quanto aqueles espaços”, diz. “Essa conjuntura revela a crueldade da nossa estrutura social. A nossa falência social também é a nossa falência urbana e vice-versa.”

Símbolo de pujança econômica, a avenida Paulista assiste ao crescimento desenfreado dessa população. O vão-livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo) abriga malocas de crianças e jovens menores de idade. Em frente ao parque Trianon, coberto de vegetação remanescente da mata atlântica, diferentes perfis se avizinham, entre os quais o grupo de barracas dos artesãos.

Cicinho, 25, mora ali há três meses com a mulher e a filha de cinco anos. “Ficam só os hippies desse lado para evitar problemas com os nóias”, diz ele, que sustenta a família com a venda de artesanato.

Desempregado, Clyger Michel, 28, se divide com a mulher, Patrícia Nery, em busca de comida, cobertor e fralda para as crianças. Ela fica com a filha Ana Clara, de cinco meses, e com o filho Miguel, 4, na maloca da família, na praça do Patriarca, enquanto ele se desloca para a frente do Theatro Municipal, palco da Semana de Arte Moderna, em 1922.

Clyger Michel (28) com seu filho de dois anos; eles moram na praça do Patriarca e todos os dias aguardam por doações em frente ao Theatro Municipal – Bruno Santos/Folhapress

Michel costuma levar consigo o filho João Paulo, 2. Nem pai nem filho conhecem por dentro o teatro, inaugurado em 1911. “A escadaria do Municipal vira parquinho, o playground do meu filho”, conta Michel, há seis meses vivendo na rua, acampado em uma maloca.

Para ele, o pior ambiente do centro é a praça da Sé. “Hoje, a maior das cracolândias. Tem muita maloca de noia e de rolo”, diz, referindo-se a barracas que abrigam tanto usuários de crack como pessoas que comercializam produtos de roubo e furto.

Foi justamente na praça que Cláudia Elaine dos Santos, 36, o marido e dois filhos foram parar, na semana passada, quando desceram de um ônibus pinga-pinga vindo de Araçagi (PB). Segundo Cláudia, eles vieram para São Paulo porque ela está na fila de um transplante de medula óssea.

Ao lado do marido, Givaldo Bezerra, 46, e dos filhos João Vitor, 9, e Janine, 12, ela conta que toda a família é portadora do HIV.

“Quando chegamos, nos falaram que o cartão-postal de São Paulo era a Sé, que ali conseguiríamos apoio da prefeitura, de igreja, mas aquele lugar é um verdadeiro inferno.”

Dizem que foram roubados. Procuraram abrigo na Patriarca, uma das praças mais antigas da cidade, que começou a ser construída em 1912. Lá se concentra a população LGBTQIA+ em situação vulnerável. Pediram permissão aos moradores mais antigos para ali permanecerem e ganharam uma maloca de um paulistano voluntário.

Diante do prédio em estilo que lembra o de construções italianas da década de 1930, a família paraibana desconhecia que ali funciona a prefeitura, local de trabalho do prefeito Ricardo Nunes (MDB).

Sem perder a inocência típica das crianças, o caçula João Vitor se encanta com a iluminação do prédio e pergunta: “Mas quem vive nessa casa grande? Lula ou Bolsonaro?”.

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